13 de mai. de 2011

Cuidado com a poesia: o ECAD contra-ataca

Recebi um texto super bonito sobre o direito autoral que tem diversos pontos importantes que disfarçam outros perigosíssimos com sua poesia. Muitos autores, inadvertidamente, assinaram esse manifesto do ECAD que rejeita, novamente, a fiscalização. E, como dizemos no GAP – Grupo de Articulação Parlamentar Pró Música -, quem não quer fiscalização tem que ser fiscalizado!

Antes do texto, vem uma cartinha informal, bastante simpática:

“Minha gente,

Aconteceu aqui no Rio um encontro para bater papo sobre as questões da nossa classe e nesse encontro, que foi super relax, rolou um texto com princípios gerais que fundamentam a nossa profissão, escrito pelo Antonio Cícero e pelo Fernando Brant, com a colabração do Kassin.

Vamos publicar o texto na internet e ele poderá ser assinado por autores, compositores, artistas e demais profissionais que – numa posição apartidária, independentemente de linha política, discursos, holofotes, imprensa e microfones – acreditam neste conceito fundamental como base para qualquer outra discussão.

Tem muita gente bacana que já deu o seu apoio, como meu amigo Erasmo Carlos, Nelson Motta, Marcos Valle, Joyce, Berna Ceppas, e por aí vai. A lista está crescendo e se vocês também quiserem se subscrever basta responder a este email que terei o prazer de inclui-los na lista.

Sintam-se à vontade também para encaminhar a quem vocês acharem que pode se identificar com o texto.”

Na assinatura desse pequeno texto se revezam Ronaldo Bastos, Sandra de Sá e muitos outros artistas importantes da história da MPB

Lá vai o texto, o meu comentário e as assinaturas:



“o autor existe.

o direito autoral é uma conquista da civilização, o contrário é a barbárie.

o direito autoral é um dos direitos humanos (carta da ONU).

ao autor pertence o direito exclusivo de utilizar sua obra (cláusula pétrea de nossa Constituição).

o direito autoral é um direito privado.

somos capazes de criar e administrar o que nos pertence. para isso, não precisamos da mão do Estado.

há dois lados na questão: o criador que quer receber e empresas que não querem pagar.

para resolver isso, a Justiça e o Estado podem e devem colaborar.

a lei atual protege os criadores no mundo real e no virtual. ela pode ser melhorada e aprimorada.

o que se passa na internet em relação ao direito autoral é transitório:

a tecnologia que cria supostos conflitos os resolverá.

todos os autores têm de ter à sua disposição todas as informações sobre o que se arrecada e se distribui.

essa comunicação tem de ser pública e oferecida, também, ao Ministério da Cultura.

a função social da arte é espalhar beleza e prazer estético para a humanidade.

a obrigação de tornar a cultura acessível a todos é do Estado, sem prejudicar o autor.”



É claro que a maioria dos pontos é de aceitação universal. Esse é o perigo! Misturado com essas verdades vêm algumas posições bastante dúbias:



“o direito autoral é um direito privado.

somos capazes de criar e administrar o que nos pertence. para isso, não precisamos da mão do Estado.”



Não é isso que essas fraudes divulgadas na imprensa têm demonstrado. A falta de regulamentação e fiscalização facilita os desvios, a corrupção e os inúmeros processos que não são bons nem para quem recebe nem para quem paga. Mais para frente no texto existe um parágrafo que quase contradiz essa “verdade”:



“há dois lados na questão: o criador que quer receber e empresas que não querem pagar.

para resolver isso, a Justiça e o Estado podem e devem colaborar.”



Agora o Estado deve intervir? Só para garantir o ECAD? E a negociação com a sociedade? E a cobrança justa? E o acordo ao invés do processo? Só vale o Estado se for para defender o monopólio, mas nunca para controlá-lo?



Nessa frase há outra meia-verdade. As empresas não querem pagar o que o ECAD quer cobrar, mas não querem deixar de pagar um valor justo. Cobrar 2,5% do faturamento bruto de uma empresa é se tornar sócia dela sem os riscos do negócio. É claro que muita gente vai entrar na justiça, para a alegria dos diretores das sociedades que dividem honorários advocatícios com os escritórios contratados, segundo reportagem do jornal O Globo. Cobrar 10% do borderô de um show é incentivar a corrupção dos fiscais do ECAD e a sonegação que rouba o dinheiro de nossos compositores. Se cobrássemos menos, teríamos menos inadimplência e desvio e nossos autores poderiam viver de shows.


É engraçada a certeza embutida na frase:

“a tecnologia que cria supostos conflitos os resolverá.”


Será? Será que não somos nós que temos que inventar formas novas de nos remunerarmos em função dessa nova realidade? Por que o ECAD quer distribuir os direitos pagos pelo YouTube segundo os critérios de amostragem das rádios FM que vivem de jabá? E a cada 6 meses? As coisas são muito mais imediatas e verificáveis no mundo tecnológico.


Mas o mais cínico está no parágrafo:


“todos os autores têm de ter à sua disposição todas as informações sobre o que se arrecada e se distribui.

essa comunicação tem de ser pública e oferecida, também, ao Ministério da Cultura.”


Isso eu assino feliz! Mas, se temos esse direito, por que até agora ele nos foi negado pelo ECAD e pelas associações que o integram? É isso que vimos pedindo e que nos tem dado a pecha de radicais e de inimigos do direito autoral – embora estejamos verdadeiramente do lado dos autores, já que tiramos parte dos nossos sustentos daí. Agora, como vimos batendo nessa tecla, acenam com a possibilidade de começarem a nos dizer quais são as regras do jogo que temos jogado no escuro desde sempre.


Não condeno o texto todo, mas com algumas edições poderíamos todos, autores, artistas, intérpretes, produtores, público, sociedade, assinarmos felizes:


“o autor existe.

o direito autoral é uma conquista da civilização, o contrário é a barbárie.

o direito autoral é um dos direitos humanos (carta da ONU).

ao autor pertence o direito exclusivo de utilizar sua obra (cláusula pétrea de nossa Constituição).

o direito autoral é um direito privado.

mas a Justiça e o Estado podem e devem colaborar.

a lei atual protege os criadores no mundo real e nem tanto no virtual. ela pode ser melhorada e aprimorada.

todos os autores têm de ter à sua disposição todas as informações sobre o que se arrecada e se distribui, além de poder opinar sobre valores e pertinências das cobranças.

essa comunicação tem de ser pública e oferecida, também, ao Ministério da Cultura e à sociedade.

a função social da arte é espalhar beleza e prazer estético para a humanidade.

a obrigação de tornar a cultura acessível a todos é do Estado, sem prejudicar o autor.”



Para terminar vou citar uma entrevista do autor do texto e atual diretor da UBC - União Brasileira dos Compositores - que parece ter acontecido em outra encarnação. Com a palavra, Ronaldo Bastos:


" O artista brasileiro pode ser de oposição, lutar, dentro ou fora do seu trabalho, pela mudança do regime, mas não pode fugir dessa fria constatação : sem a atuação decisiva do governo no controle da arrecadação dos direitos autorais e direitos conexos, não há saída. E indaga - Por que, até hoje, o governo não tomou para si essa tarefa? Muito dinheiro de impostos está sendo desviados, sem que, até agora, tenha sido tomada uma atitude mais drástica. Esperar pela iniciativa oficial, porém, músicos e compositores não podem. " (Estado de São Paulo, 9/5/1982)


Esse povo aí assinou a primeira versão. Será que sabem o que assinaram? A Fafá de Belém já disse ao Dudu Falcão que assinou porque o Fernando Brandt (Presidente da UBC) pediu. A essa altura talvez já tenha mudado de ideia.


Abel Silva

Alcione

Alexandre Camara

Alexandre Kassin

Aloysio Reis

Alvinho Lancellotti

Amaro Peres

Ana Terra

André Leonno

Antonio Adolfo

Antonio Cícero

Arthur de Faria

Ary Sperling

Berna Ceppas

Beto Guedes

Caetano Veloso

Carlinhos Brown

Carlos Lyra

Carlos Madruga

Carlos Rennó

Celso Fonseca

Claudio Jorge

Claus Fetter

Cris Braun

Dalto Medeiros

Danilo Caymmi

Dante Ramon Ledesma

Dedé Badaró

Dori Caymmi

Duca Leindecker

Edmundo Souto

Egberto Gismonti

Elder Effe

Enzo (Enzo e Rodrigo)

Erasmo Carlos

Fábio Trummer

Fafá De Belém

Fátima Valença

Fausto Nilo

Fernando Brant

Fernando Cavallieri

Flávio Venturini

Frank Solari

Fred Zero Quatro

Gabriel Pondé

Geraldo Vianna

Gildário de Assaré

Guilherme Arantes

Herminio Bello de Carvalho

Ivor Lancellotti

Jards Macalé

Jeronimo Jardim

Joca Perpignan

Jorge Portugal

Joyce

Jussara Silveira

Leleo

Leo Esteves

Leo Gandelman

Leo Henkin

Lu Horta

Luciano Salvador Bahia

Maestro Marlos Nobre

Marcos Sacramento

Malu Aires

Manoel Pinto

Marcelo Bonfá

Marcelo Costa

Marcelo Frota

Marcílio Mendonça

Márcio Borges

Marcio Tapajós

Marcos Valle

Marcos Sacramento

Maria Luiza Nobre

Marlon Sette

Murilo Antunes

Nelson Motta

Nenung (Os The Darma Lóvers)

Orlângelo Leal

Oscar Soares

Paulo Jobim

Paulo Monte

Paulo Ró

Paulo Sergio Valle

Pedro Morais

Ramon Cruz

Raul Ellwanger

Renato Ladeira

Roberto Menescal

Rodrigo (Enzo e Rodrigo)

Ronaldo Bastos

Rubinho Jacobina

Ruy Castro

Sacha

Sady Homrich (Nenhum de Nós)

Sandra de Sá

Serginho Herval

Sérgio Santos

Sueli Costa

Tavinho Moura

Tavito

Torcuato Mariano

Totonho e Os Cabra

Túlio Mourão

Tuninho Galante

Turíbio Santos

Tuta Aquino

Von Kilzer

Wado

Yé Borges

Zeh Rocha

Zuza Homem de Mello

12 de mai. de 2011

Fora do Eixo - saiba como funcionam os coletivos


Artistas e organizadores do Fora do Eixo

Saiu na Revista Trip. Para ter acesso ao original: http://revistatrip.uol.com.br/revista/199/reportagens/ministerio-da-cultura.html

MINISTÉRIO DA CULTURA

Enquanto o governo vive uma crise no MinC, a rede Fora do Eixo cria uma nova e independente política cultural
12.05.2011 | Texto por Bruno Torturra Nogueira Fotos Bruno Torturra Nogueira

Em 2006 uma turma de Cuiabá fundou uma rede de coletivos para organizar artistas independentes longe dos grandes centros. Eles criaram o Circuito Fora do Eixo. Cinco anos depois se tornaram uma poderosa organização capaz de realizar mais de 5 mil shows ao ano, em mais de cem cidades. Recém-sediados em São Paulo, em meio a uma crise que envolve a nova ministra da Cultura, eles descobrem que talvez a possam controlar mais do que carreiras. Podem ter poder político

Pablo Capilé foi avisado por um de seus muitos companheiros de casa que havia alguém esperando do lado de fora. Quando saiu, viu a presidenta, Dilma Rousseff, ao portão. Ela queria conversar com o rapaz, articulador que era, sobre o Ministério da Cultura. Preferiu não entrar, mas o convidou para um refrigerante no botequim ali do lado. Em uma estreita rua do bairro da Liberdade, quase no Cambuci, tomando um guaraná de canudinho, a mandatária trouxe as boas-novas. “Pode ficar tranquilo, meu filho”, Dilma disse, “a Ana de Hollanda não vai durar nada no governo.” Pablo mal teve tempo de comemorar... Acordou no meio do sonho e, antes de rir de si mesmo, apanhou o iPhone do lado da cama. Checou o e-mail, o Twitter e foi à luta no andar de baixo, onde fica seu escritório e a sede do Fora do Eixo, a rede que coordena.
A agenda do dia era, como sempre, cheia. E envolvia, entre muitos compromissos, participar da redação de uma carta à própria Dilma Rousseff. Escrita por muitas mãos, em trocas de e-mails pelo Brasil, o documento manifestava a decepção de muita gente com o novo Ministério da Cultura. Nas entrelinhas da carta estaria uma reivindicação fundamental. E que se tornou, em termos literais, o mais recente sonho de Capilé: a demissão da ministra Ana de Hollanda.
Os argumentos espelham uma polêmica de muitos braços que vem ganhando volume em artigos de jornais, no Twitter, em debates e dividindo artistas em discussões que raramente ganhavam repercussão pública: a retirada da licença de Creative Commons do site do ministério, a verba para os Pontos de Cultura, o papel do Ecad, a complexa reforma na lei de direitos autorais no Brasil... Mas, muito mais importante do que cada uma das questões, o que mais inflama os ânimos desse exército cada vez menos disperso de agentes culturais é “a falta de visão da ministra”, resume Capilé. “Ela mal assumiu e já anunciou um grande retrocesso, é o retorno de uma política ultrapassada. E veio em uma hora muito errada. Agora era a hora de acelerar... Não de termos uma ministra analógica”, conclui, enquanto checa compulsivamente seu laptop e o celular, antes de levar a Trip para uma tour pela casa Fora do Eixo de São Paulo.

Vista de cima da casa Fora do Eixo

É um enorme sobrado, antigo, alugado de um chinês do Cambuci por R$ 4 mil ao mês. Uma pechincha dado o tamanho. São duas salas, oito quartos, uma enorme cozinha, quintal, churrasqueira e outra construção ao fundo, de dois andares, onde fica um estúdio de ensaio para bandas, uma sala para edição de vídeos, um terraço e mais um quarto para alojamento. No andar de baixo da casa, uma jovem equipe se espalha em mesas e sofás, cada um atrás de um laptop. Gente de Recife, Uberlândia, Buenos Aires... a lista corre em muitas cidades. No andar de cima, os quartos entregam o clima de república. Bem mais bagunçados, são apenas dormitórios para as 18 pessoas que moram na casa. Contraste com a organização espartana das áreas de trabalho.

É fácil descrever a casa fisicamente. Mais complicado é explicar o que de fato acontece por ali, e que faz do endereço ocupado há três meses por esse jovem grupo um dos maiores quartéis de uma luta política e artística. Para isso, precisamos antes voltar ao já distante ano 2000, em Cuiabá.
Naquele tempo, Pablo Capilé era um estudante de comunicação, parte de um grupo interessado em dar um gás na cena musical de sua cidade. Como quase toda capital no Brasil, a do Mato Grosso não era exatamente o melhor terreno para uma banda independente, ainda colocada apenas como consumidora do som que vinha embalado por gravadoras, quase sempre de São Paulo e Rio de Janeiro – o tal eixo. Mas, inspirado pelo maguebeat que havia aflorado em Recife anos antes e pela libertação digital que a internet trouxe, o grupo montou um coletivo na tentativa de ajudar bandas e criar um público local. Alugaram uma casa e fundaram o Cubo Mágico, a fim de produzir shows, festivais e discos em Cuiabá. O problema, evidente, foram as finanças.

“A gente nunca foi caloteiro”, jura Capilé, “a gente era administrador de dívidas.” O prejuízo de um festival era pago com a receita do seguinte, que seria pago com ingresso de outros shows, que seriam pagos com vendas de CDs... e a rolagem seguia. Foi quando uma sacada econômica deu fôlego ao frágil esquema de manutenção da cena cuiabana. Por melhores que fossem as intenções, todos os envolvidos, de músicos a donos de bares, precisavam ser pagos de alguma forma. E, como não havia dinheiro disponível, eles tiveram que inventar um. Entrou em circulação o Cubo Card.

Existia em cédulas mesmo, emitidas pelo próprio coletivo. E era com elas que pagavam a maior parte de seus cachês. O Cubo Card, por sua vez, poderia ser usado para comprar ensaios, releases, camisetas da banda e serviços prestados por gente ligada ao coletivo. Pagava também as cervejas dos envolvidos. Logo, começou a valer como moeda em um restaurante parceiro ou em uma locadora de filmes que os patrocinava. Foi às custas de seus cachês em Cubo Cards que bandas como Vanguart e Macaco Bong gravaram seus primeiros discos e se tornaram os filhos pródigos do rock do Mato Grosso.
Enquanto coletivos como o Cubo Mágico pipocavam no país todo, o mainstream sofria no bolso como nunca. A venda de CDs despencou e rádios perderam relevância em um mercado rapidamente dominado por iPods e seus primos. Foi também a época em que Gilberto Gil assumiu a pasta da cultura no governo Lula e anunciou políticas que reconheciam as novas tecnologias digitais não só como inevitáveis, mas também como libertadoras. A ordem era descentralizar, sair do eixo e digitalizar comunidade. Surgiram os Pontos de Cultura. E o ministério se tornou, ao abraçar softwares livres e a licença de Creative Commons, uma trincheira segura para os partidários de uma revisão urgente das leis de direitos autorais, e da própria indústria cultural, em um mundo conectado pela internet. Em uma convergência inédita, governo e guerrilheiros culturais tinham planos parecidos.
Foram anos decisivos na cultura independente brasileira, e que deram a Capilé e seus comparsas do Cubo uma perspectiva mais ampla do que estavam de fato construindo. “A nossa geração não tinha uma bandeira muito clara como a dos anos 60, que lutava contra alguma coisa. Nem a crise existencial da turma dos anos 80, que estava tentando se entender. Mas a gente decidiu lutar por alguma coisa. E com a internet apareceu uma possibilidade real de se comunicar, de inventar uma carreira sem precisar passar pelos caminhos corporativos”, diz Capilé em seu escritório, ou como prefere chamar “a Casa Civil” da rede.
Com essa filosofia mais clara, e depois de anos se tornando figura fácil em festivais e congressos dos independentes, Capilé articulou com Talles Lopes (de Uberlândia) e Daniel Zen (de Rio Branco e atual secretário de cultura do Acre) o circuito Fora do Eixo. A ideia era se tornar uma rede nacional de coletivos para potencializar as ações de milhares de pessoas que tentavam, em seus quintais, produzir e viver de arte. Fundado em 2006, ainda residia em Cuiabá e mantinha seu caixa funcionando com muito pouco dinheiro.

O caixa coletivo e as devidas prestações de conta

De lá para cá, e passando muito abaixo do radar da mídia, o Fora do Eixo se tornou uma central que conecta cerca de 73 coletivos do Brasil de parte da América Latina. No circuito que montaram, através de casas noturnas, selos e festivais parceiros, apenas em 2010 passaram mais de 5 mil (!) bandas. Sob o guarda-chuva do Fora do Eixo, a rede dispõe de 57 CNPJs de todo tipo: editora, produtora, bar, ONG, Oscip, fundação... Grande também é o número de cartões que eles podem utilizar para financiar projetos e despesas pessoais. E é justamente com a maneira como o dinheiro circula na organização que a mentalidade capitalista do repórter, e a do leitor, há de se confundir.

Nem Pablo Capilé nem nenhum de seus colegas que trabalham diretamente no Fora do Eixo tem um salário. Vinte e oito pessoas têm a senha do cartão do banco e podem utilizá-lo livremente para suas despesas pessoais. Tudo que precisam fazer é discriminar e justificar o gasto. Em resumo: se você entra e trabalha para o Fora do Eixo, você tem todas suas despesas pagas. E esse tipo de remuneração é seguido por até 2 mil pessoas pelo país nos coletivos ligados ao circuito. A medida são o bom-senso e a dedicação de cada um. “Se eu quiser eu posso ir à loja e comprar um Nike”, Capilé elabora, “mas depois eu vou ter que contar por que eu preciso de um Nike se meu colega está usando um Conga...” Isso explica por que a maioria por ali se veste de maneira bem modesta, vive em quartos quase sem adornos, mas carrega iPhones 4 e Macbooks de última linha.
É com esse orçamento ultrassocialista que alugaram, no começo de 2011, a casa em São Paulo, e estabeleceram ali a nova sede para uma nova fase. O Fora do Eixo montou seu quartel-general no coração do eixo. Agora, com a trama bem costurada em 112 cidades, a estratégia é ganhar o mainstream, atrair artistas com carreiras mais consolidadas e criar um polo para atrair gente, dinheiro e oportunidades. Em parceria com o Studio SP, principal palco da cidade para novos músicos, já ganharam as noites de terça-feira para agendar bandas do Brasil e da América Latina. A casa se tornou também uma estalagem para artistas que vêm mostrar seu trabalho na metrópole e uma espécie de escola para moleques que saem de suas cidades para aprender, dentro do Fora do Eixo, a gerenciar um coletivo. E também se tornou um ponto para estratégicos churrascos de domingo. O primeiro deles, uma prévia dos que serão realizados todo domingo a partir de maio, foi organizado para receber a Trip e apresentar alguns parceiros. Umas cem pessoas apareceram para a tarde de cerveja, carne e conspirações.
Um garoto mineiro, que fundou o Catarse, o primeiro site no Brasil de crowd funding, apareceu para oferecer ajuda. Quer usar seu esquema de financiamento de projetos culturais através de pequenas doações na internet para bancar a reforma da casa Fora do Eixo. Outro grupo de Belo Horizonte, do coletivo Pegada, veio para articular uma série de festivais, um por semana, até o fim do ano em Minas Gerais. Gabi Amarantos, a autointitulada “Rainha da Aparelhagem” de Belém do Pará, apareceu e ficou de papo com Bianca Jhordão, a bela vocalista carioca da banda Leela. Macaco Bong, a banda abre-alas do Fora do Eixo, ensaia com a Burro Morto para um show no Studio SP.
Mesmo em um domingo, a maior parte da equipe segue trabalhando em laptops no meio do churrasco. Postam fotos da festa, divulgam os shows que vão acontecer nos próximos dias pelo país, atualizam blogs, respondem e-mails... É digitalmente, na rede, que o Fora do Eixo cria seu público, seu mercado, sua realidade. Não é à toa que por ali também petisca um veterano da contracultura, Cláudio Prado.
Premiado em 2009 no Trip Transformadores por seu trabalho de inclusão digital junto ao Ministério da Cultura de Gilberto Gil, Cláudio está, desde os anos 60, na luta pela criação de um ambiente cultural mais permeável e democrático no Brasil. Homem difícil de definir através de cargos, é uma mistura de pensador e agente, articulando nos bastidores de festivais e encontros da cultura digital. Cláudio enxerga naquela casa uma utopia sonhada por sua geração. Ele explica: “O movimento Fora do Eixo é uma molecada que propõe que reinventemos tudo, e começa por reinventar o dinheiro. E não é ouro que eles fabricam... é tesão, felicidade em estado bruto, que contamina como energia radioativa do bem. Passe um dia na casa para realmente entender o que é a felicidade da geração pós-rancor, pós-grana, pós-tudo!”.
Cláudio era uma das pessoas na mesa da Casa Civil do Fora do Eixo quando a carta à Dilma Rousseff estava sendo alterada. Articulador crucial do antigo ministério de Gilberto Gil, ele é um dos principais braços na hora de abrir o acesso da molecada representada pelo Fora do Eixo em Brasília. É um dos representantes que vai à capital entregar a carta à presidenta. E tentar abrir os olhos do poder para um fato tão real quanto invisível aos olhos da velha corte cultural brasileira: a digitalização exige uma reforma ampla e inclusiva das políticas públicas. E um diálogo aberto com novos e pulverizados participantes.
“O MinC hoje desconstruiu esse diálogo. Deixou órfãos milhares de esperanças. A perda desse diálogo do governo com a sociedade civil é que estamos chamando de retrocesso. Mas isso é um acidente de percurso – os movimentos desencadeados nos oito anos de Lula são inexoráveis. O sonho não acabou não... Ele renasce tropicalista, na vocação plena do Brasil Fora do Eixo. O governo voltará a nos entender...”, garante Cláudio Prado.
Saiba mais: http://foradoeixo.org.br

Leia também as colunas de Alê Youssef (O Partido Pós Rancor) e de Ronaldo Lemos (O elefante na sala do ministério) que integram esta reportagem da Trip 199

2 de mai. de 2011

Dossiê do ECAD na mídia (extra)

Vale a pena ler o texto que saiu na revista Brasil de Fato que explica o funcionamento do ECAD e seus principais atores:



Matéria da Brasil de Fato | Leandro Uchoa
foto de capa por Antonio Cruz/ABr

Responsável pela arrecadação e distribuição de direitos autorais, e pouco transparente, o órgão é controlado por uma cúpula e defende interesses de multinacionais

NA ATUAL CRISE do Ministério da Cultura (MinC) sob comando de Ana de Hollanda, muitos talvez sejam os pontos em conflito. O maior deles, entretanto, talvez seja o direito autoral. Como fartamente noticiado, a gestão anterior, de Juca Ferreira, deixou pronto um projeto de lei do setor para ser votado pelo Congresso Nacional. O texto já fora amplamente discutido, ficara quatro meses em consulta pública, e já passara pela Casa Civil. Ana segurou o projeto, alegando não ser o momento oportuno para apresentá-lo.

Há muitos elementos para explicar o recuo. Entretanto, um deles é central, e diz respeito ao Escritório Central de Arrecadação e Distribuição, o Ecad. Responsável por coletar e repartir os recursos para os autores, o órgão está no centro da polêmica. Uma análise profunda da movimentação do escritório revela os interesses nem sempre nobres por trás de sua atuação.

O Ecad é uma sociedade civil de natureza privada. Foi criado em 1973 para organizar a arrecadação e distribuição dos direitos autorais, até então pulverizada em diversas associações, com fluxo caó-tico e confuso. Na época, foi criado também o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA) para fiscalizá-lo. Este órgão, entretanto, foi extinto em 1990, pelo presidente Fernando Collor. Alegava-se que estava corrompido, e que era preciso criar outro sistema de fiscalização – que jamais foi criado. A lei de Direitos Autorais deixada pelo MinC anterior estabeleceria um mecanismo de fiscalização. Entretanto, a atual gestão dá seguidos sinais de que discorda da necessidade de que o Ecad seja fiscalizado. “Em toda sociedade de gestão coletiva do mundo há fiscalização. Isso é um escândalo. É como se déssemos ao Bradesco o direito de receber todos os salários de funcionários públicos do Brasil, cobrando o que quiser, sem fiscalização. A gente confi a no Bradesco?”, indigna-se o músico Tim Rescala, da organização de artistas Terceira Via.

“Sem fins lucrativos”

O Ecad é administrado por dez associações. Por lei, seria uma entidade “sem fins lucrativos”. Em 2010, arrecadou nada menos do que R$ 432,9 milhões, e distribuiu aos artistas R$ 346,5 milhões. Isso significa que a diferença – volumosos R$ 86,4 milhões – teriam sido utilizados para cobrir despesas administrativas. Foram beneficiados 87.500 artistas, de um total de mais de 350 mil fi liados (75% dos autores, portanto, não receberam nada). A justificativa do Ecad, nesse caso, é que os 87.500 são os únicos que criam e interpretam obras musicais com potencial econômico. Das obras contempladas, quase um quarto são estrangeiras. Para entender esses dados, é preciso fazer um raio-x minucioso na estrutura do órgão. Entre as dez associações que o administram, duas comandam praticamente sozinhas o processo. A Associação Brasileira de Música e Arte (Abramus) e a União Brasileira de Compositores (UBC) têm, juntas, 29 dos 37 votos da assembleia decisória (78,4%).

Quem é quem?

O crescimento da Abramus é recente, e deu-se a partir da migração de gravadoras e editoras para ela. Compõem a associação as multinacionais Warner, Universal, EMI – o que explica a defesa de interesses internacionais pelo Ecad. É comandada pelo advogado e músico Roberto Melo, que criou uma associação apenas para combater a reforma do direito autoral, o Comitê Nacional de Cultura e Direitos Autorais (CNCDA). Em 2010, apoiou José Serra (PSDB) nas eleições presidenciais. Roberto teria declarado que assumiria o MinC num eventual governo tucano. O músico Danilo Caymmi é diretor. As associações teriam a estratégia de utilizar figuras carismáticas da música brasileira como porta-voz.

Na UBC, o presidente é Fernando Brant, parceiro de Milton Nascimento em alguns de seus maiores sucessos. Abel Silva, Sandra de Sá e Ronaldo Bastos também integram a diretoria. A Sony é uma das multinacionais que a compõe.

O controle da UBC está na figura de José Antônio Perdomo, que já comandou o Ecad praticamente sozinho (ainda é a principal referência). Três meses antes de Brant assumir a presidência, o estatuto foi mudado, concedendo poder ao cargo que seria ocupado por Perdomo. A UBC representa o repertório musical dos EUA e da Inglaterra. Brant é amigo de faculdade de Hildebrando Pontes, o polêmico advogado ligado ao Ecad que presidiu a CNCDA. Hildebrando teria sido cogitado para assumir a Diretoria de Direitos Intelectuais do MinC. Mas com a pressão dos movimentos sociais, Márcia Regina Barbosa, que trabalhou com ele no CNCDA, assumiu. Há, ainda, uma terceira associação, a Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos Intelectuais (Socinpro), com apenas três votos na assembleia. É presidida pelo advogado Jorge Costa.

Sem democracia

No Ecad, há três associações que nãotêm direito a voto. Não por coincidência, chegaram a fazer denúncias contrao órgão no passado. “Já tentaram sobreviver sem ele, mas não conseguiram, porque é um monopólio”, explicaTim. No passado, para se estabelecer ovoto societário, havia três critérios: nú-mero de associados, representatividade do repertório, e recebimento econômico. Com o tempo, apenas o últimoprevaleceu. A sociedade que arrecadarmais em um ano, vai mandar mais no ano seguinte. A UBC e a Abramus arrecadam, juntas, quase 80% do total. Issoacontece porque são as entidades ondeestão as editoras multinacionais. Entre elas a EMI, a maior editora do planeta.Elas pautam seus interesses por meio desses mecanismos.
Metade do repertório da UBC é de música estrangeira. Em 2005, por exemplo, representava 15% do repertório doEcad. Em 2009, essa participação subiu para 31%. Os Estados Unidos são as principais fontes dessas canções. O país não paga ao Brasil direito conexo (referente ao intérprete). Mas o Brasil paga aos Estados Unidos. Questões como essa são pautadas, internamente, no Ecad, pela UBC e pela Abramus. Esse dinheiro internacional não passa pelo Ecad. “Nem o Ministério das Relações Exteriores, nem o Banco Central sabem desse dinheiro. Muitos músicos reclamamque não recebem, e não sabem porquê”, protesta Tim.
Advogado que atua em defesa de autores prejudicados pelo sistema, DanielCampello, da UpRights, explica o processo. “O sistema Ecad se fortaleceu no início dos anos 2000, com o início da queda do mercado do disco no Brasil.A partir de então, as gravadoras e editoras major – multinacionais que controlam a maior fatia do mercado da músicano Brasil – passaram a tomar assentosnas associações que compõem o Ecad. Dessa forma, o sistema que, em tese, seria gerido pelos próprios autores e intérpretes, na verdade tem como as principais cabeças de comando pessoas que trabalharam, ou ainda trabalham, paraas gravadoras e editoras multinacionais. Assim, o sistema é pautado por uma distribuição do dinheiro muito concentrada nos artistas dessas multinacionais,dando a elas uma fatia muito grande doque se arrecada”, diz.

Procurado pela reportagem do Brasil de Fato, o Ecad não deu retorno.